segunda-feira, 11 de março de 2013

Diálogo sobre o que é anarquismo.


João, militante anarquista, faz trabalho de base em um bairro da periferia. Marcelo é um rapaz que mora na periferia e que já teve algum contato com o movimento comunitário local, ainda que pouco. Ouviu dizer que João é anarquista e resolveu que da próxima vez que tivesse uma oportunidade, perguntaria a ele sobre o tal anarquismo. Afinal, João era um rapaz tão sério e organizado… As pessoas não falam que anarquismo é coisa de gente bagunceira e irresponsável? Algum tempo depois, a situação permitiu uma conversa entre eles.

Marcelo: João, ouvi dizer que você é anarquista. Isso é verdade?

João: hehe… Quem te falou isso?

Marcelo: O seu Carlos…

João: É verdade. Eu sou um anarquista, defendo o anarquismo.

Marcelo: E o que é anarquismo?

João: O anarquismo é uma ideologia, ou seja, um conjunto de idéias, de valores, de aspirações, que possuem ligação direta com uma prática política. Entendeu?

Marcelo: Mais ou menos…

João: O anarquismo é esse conjunto de idéias que faz com que os anarquistas atuem na prática fazendo as coisas que eles acreditam na teoria virar realidade.

Marcelo: Ah… Então é possível concluir que o anarquismo é composto por essas idéias e práticas que você fala.

João: Exatamente.

Marcelo: E de onde veio o anarquismo?

João: Surgiu na Europa, uns 150 anos atrás… Faz muito tempo. Foi uma época em que todo o socialismo surgiu de um grande movimento operário que aparecia por causa do desenvolvimento do capitalismo. O capitalismo substituía as antigas formas de organização da economia pelo trabalho assalariado nas fábricas, era um momento de industrialização, ou seja, de desenvolvimento das indústrias. O socialismo surge das idéias e práticas das pessoas que estavam sendo oprimidas nesse momento. E o anarquismo é um tipo de socialismo.

Marcelo: Mas há mais de um tipo de socialismo, certo? Tinha um tio meu que era do PT e minha mãe falava que ele era socialista… E acho que ele não é anarquista.

João: Tem sim. O anarquismo é um socialismo revolucionário e libertário. Os anarquistas são socialistas que acreditam que a sociedade deve ser transformada por uma revolução social e que a nova sociedade deve ser socialista, e não capitalista. E esse socialismo também não pode ter só igualdade, tem que ter liberdade também… Por isso, alguns chamam o anarquismo de socialismo libertário… É a igualdade com a liberdade. É podermos nos associar livremente, tanto nos lugares onde moramos, como nos lugares onde trabalhamos, sem chefes e nem patrões, para tomarmos nossas próprias decisões sobre aquilo que nos diz respeito. Tem socialismo que é reformista, ou seja, que acha que o capitalismo pode ser modificado sem revolução, e tem também aqueles que nem acham que o capitalismo deve ser superado… Há também os socialistas que acham que a liberdade só deve existir em um futuro muito distante. Falam em ditadura… Tudo isso. Então, apesar dos anarquistas serem socialistas, eles são muito diferentes dos socialistas do PT. E não sei nem se tem socialista no PT ainda…

Marcelo: Essa coisa de igualdade e liberdade é muito legal. Mas ao mesmo tempo parece algo muito distante e fora da realidade. Você não acha que isso é coisa de sonhador? De falta de pé no chão? As vezes essas idéias me parecem algo muito bonito na teoria, mas que na prática não funcionam.

João: Uma nova sociedade de liberdade e igualdade pode realmente estar distante, mas isso é o nosso
objetivo, onde queremos chegar… E para nós anarquistas, são os meios que determinam os fins, ou seja, se queremos igualdade e liberdade na nova sociedade, precisamos promover isso aqui e agora, nas nossas lutas. E as lutas não são coisas de gente sonhadora. Olhe aqui à nossa volta, muitas coisas são conquistadas com a luta. Lembra que o pessoal do bairro ao lado ocupou uma área vazia, e depois de muita luta conseguiu ficar lá? Foi por causa da luta. Você acha que eles são sonhadores? Ou que não têm os pés no chão?

Marcelo: Não, mas eles estavam lutando por uma coisa concreta e não para mudar o mundo…

João: Na realidade, são as lutas de hoje que vão determinar o lugar onde vamos chegar. E é por isso que defendemos algumas posições para as lutas aqui… Você já reparou que alguns de nós sempre estão defendendo que devemos ter autonomia em relação aos partidos e aos políticos, que a luta traz muito mais conquistas do que eleger vereador, que devemos nos organizar em assembléias em que todo mundo pode falar e ouvir e onde as decisões são tomadas?

Marcelo: É reparei. Então as posições que você defende são as posições anarquistas…

João: Exatamente. Nós anarquistas acreditamos que as coisas só mudam com luta. Por exemplo: o pessoal sem-terra só consegue terra na luta, o pessoal sem-teto só consegue teto na luta e assim por diante. É a luta que se faz em torno da necessidade. Por exemplo, nosso movimento aqui junta todo esse bairro para fazer luta pelo saneamento básico é um movimento comunitário. Aqui não tem água encanada, esgoto e tal, e nós estamos nos organizando para obrigar a prefeitura a investir nisso aqui. Como aqui é uma região pobre, temos que fazer isso, porque a turma só quer saber de fazer as coisas onde tem gente rica…

Marcelo: Ah sim… Mas é qualquer luta? O vereador Cicinho do PSOL que em época de eleições sempre está aqui. Ele fala que precisamos lutar pela campanha dele. Que ele sendo eleito ele defende a gente lá para os políticos… Eu sei que não dá pra confirmar muito nesse pessoal, mas parece que ele é um cara que dá pra confiar.

João: O caso do Cicinho é bom. Você já reparou que ele sempre vem aqui no momento da eleição? Então, depois ele dá uma desaparecida e só volta na época da outra eleição, ainda que de vez em quando ele dê uma ajuda aqui para a gente. Ele é um cara gente boa, bem intencionado e tudo, mas o sistema, a política dos vereadores, dos deputados e tal, acaba engolindo o cara. O cara fica fazendo aquele jogo lá e acaba quase não tendo condições de ajudar quem mais precisa… Veja o caso do Lula, ele era um sindicalista do povo e aos poucos foi entrando no esquema e hoje já não tem mais aquelas posições que ele tinha lá nas greves do ABC nos fins dos anos 70… São as posições que fazem as pessoas e não o contrário. Por isso que defendemos que ainda que tenhamos proximidades com alguns políticos, que alguns deles no ajudem de vez em quando, o foco da nossa luta não deve ser eleger gente para nos representar. Deve ser representarmos nós mesmos.

Marcelo: Mas a função do político não é fazer política? É para isso que eles são pagos com o nosso dinheiro!

João: É, mas eles querem fazer política por nós, em nosso nome. Quem você acha que conhece melhor as nossas necessidades, a gente ou os políticos?

Marcelo: Claro que a gente…

João: Então… A política foi roubada de nós, do povo, quando foi passada para esse pessoal que quer nos representar. Nosso objetivo é tomar a política de volta para nós, fazer nós mesmos a nossa política. A política deveria ser feita por todo mundo e não só pelos políticos… Quando nós discutimos nossos problemas no movimento, quando fazemos uma luta, quando estamos em assembléia, estamos fazendo política… É assim que a nossa política deve ser feita. E não a política que reconhece no Estado e nas suas regras os únicos meios. Os anarquistas são contra o Estado, o que significa que somos contrários ao governo, à polícia, ao que eles chamam de justiça e tudo isso.

Marcelo: Mas as vezes a nossa política tem como objetivo dar um aperto em um ou outro político, como aquela vez que a gente foi lá onde o prefeito estava fazendo discurso para protestar contra as águas paradas que estavam dando dengue no pessoal.

João: É verdade. O governo muitas vezes pode ajudar a resolver o problema, mas nós não podemos entrar no jogo dele… Nós podemos protestar, pressionar, dar um aperto como você diz, mas temos que manter essa nossa postura de luta e não de colaboração com o jogo deles… É por isso que falamos sempre que precisamos aprender a andar com as nossas próprias pernas. Temos que ser capazes de fazer nossa própria política, sem gente querer ficar mandando em nós.

Marcelo: Outro dia eu vi que você estava brigando na assembléia porque tinha um cara que não deixava os outros falarem… Parecia que ele queria mandar nos outros mesmo. O que aconteceu aquele dia?

João: Isso é outra coisa que os anarquistas defendem nas lutas, que cada um chama de um nome. O fato é o seguinte: independente do nome, nós acreditamos que não devemos ter hirarquia na luta. Não tem que ter gente que manda e gente que obedece, gente que decide e o resto que segue como uma manada de boi, gente que pensa e gente que faz. A gente acha que na luta todo mundo deve mandar e obedecer – mandar obedecendo como dizem os zapatistas – todo mundo deve tomar decisões e participar das discussões, pensar e fazer. Assim, as decisões são tomadas por todos e quando tiver necessidade em se juntar com outras pessoas, outras lutas e tal, isso se faz sem hierarquia, ou seja, sem um mandando no outro. Eu briguei com o seu Zé aquele dia porque ele estava querendo impor as posições dele. A maioria achava outra coisa e ele queria que o pessoal aceitasse as idéias dele mesmo sem querer…

Marcelo: E como você acha que essas lutas, tipo a nossa aqui, podem ajudar a criar uma nova sociedade? Elas não são muito isoladas e fracas? E tem um monte de gente que nem faz luta. Uns até acham errado fazer isso. Falam que é coisa de vândalo, que é contra o que o pastor fala na Igreja, que é coisa de gente desocupada…

João: Vamos por partes. Primeiro, precisamos falar sobre a política. A política nada mais é do que um jogo de forças na sociedade. Hoje, a posição dos que, como nós, defendem os pobres, as lutas e tal tem menos força do que o pessoal que é capitalista, que defende essa sociedade de barbárie aí… Infelizmente, tem um monte de gente que deveria estar do nosso lado, da gente que faz a luta, que quer melhorar as coisas aqui para a população que precisa, mas está defendendo a posição dos ricos, desse pessoal que só quer saber de explorar. Isso acontece porque o capitalismo já virou uma cultura, que a gente aprende na escola, na televisão… Os anarquistas acham que nós precisamos mudar essa relação de forças. E cada pessoa que a gente consegue para militar com a gente, cada movimento social que a gente consegue criar, isso aumenta a nossa força. Então, basicamente, a gente quer construir movimento onde não tem e fazer com que mais pessoas participem desses novos movimentos e também dos antigos, que já existem. Assim, juntando gente na luta que achamos que as coisas podem mudar. Essas lutas podem melhorar a nossa vida e podem ajudar a gente criar a tal sociedade nova…

Marcelo: Isso é verdade.

João: Só que tem que tomar cuidado. Não é qualquer luta que funciona. Nesse meio tem muita gente interesseira, militante profissional que quer viver na burocracia, muito problema na hora da luta que as vezes, ao invés de fortalecer a gente como povo, fortalece político, fortalece capitalista e tal. O pessoal fica usando a gente de massa de manobra para se beneficiar, ou seja, acabam deixando a gente fraco. A nossa idéia é que nós temos que aumentar a nossa força e ter número. Então tem que ter gente e gente forte, que saiba o que quer, que seja capaz de fazer luta, de tomar decisão, gente com capacidade mesmo. Por isso que a gente fala que quer criar um povo forte, ou criar poder popular. Quando a gente fala essas coisas, é isso que a gente quer dizer.

Marcelo: E essas coisas do vandalismo, da Igreja e tudo mais?

João: Isso é uma questão dos interesses que estão em jogo. Por exemplo, quem é mais vândalo, um cara que desvia dinheiro da saúde e da educação ou um movimento que quebra os vidros lá do Congresso? Quem é mais vândalo, um empresário do agronegócio que faz com que um monte de camponês não consiga sobreviver da terra ou os camponeses que protestam contra esse empresário e destroem parte da sua produção?

Marcelo: Visto dessa maneira o cara que desvia o dinheiro e o cara do agronegócio parecem mais vândalos mesmo. Realmente.

João: E eles são. É que a noção que querem colocar na nossa cabeça é que eles, que têm o poder, é que estão certos. Que eles podem ter propriedade e não usar, podem empregar gente sem pagar o que devem, etc. Isso que eles fazem condenam o nosso povo à pobreza e por isso o que eles fazem é violência contra nós. Quando às vezes nossos movimentos são violentos, eles são respostas a essa barbaridade que eles fazem com a gente. E com a Igreja, podemos falar muito mais. Você acredita em Deus?

Marcelo: Claro, oras…

João: Então, vamos pegar o caso de Jesus, o filho de Deus. Ele não defendia o amor entre os homens? Ele não defendeu sempre os pobres, a justiça?

Marcelo: Sim.

João: Então, quem você acha que está defendendo aquilo que Jesus defendeu? Nós que pregamos a igualdade, a liberdade, o amor, que ninguém explore ou maltrate o outro, ou aqueles que tem preconceitos, que sustentam a desigualdade, que oprimem os outros, que têm raiva no coração, que maltratam os outros? Quem você acha que está fazendo o que defendia Jesus?

Marcelo: Nós é claro.

João: Então ninguém que é realmente um cristão pode ser contra essas idéias… Agora, o problema é que muito cristão por aí acaba usando a religião para alienar, para afastar as pessoas da luta, para fazer elas se conformarem com as coisas. A gente tem que ter cuidado com isso.

Marcelo: É verdade… Porra João, gostei muito do nosso papo. Aprendi um monte de coisas e esclareci umas dúvidas.

João: Eu também gostei muito do papo. Vamos conversar mais quando der.

Fonte: http://anarquismosp.org


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